Por Magali Cunha do Nascimento*
Diante da forte visibilidade de grupos evangélicos nos dias de hoje, ouvimos de muita gente: são todos assim? É possível falar sobre “os” evangélicos? Em evidência estão, de fato, grupos identificados como fonte de várias controvérsias: cruzadas religiosas com fixação na moralidade sexual conservadora; lideranças agressivas, promotoras de intolerância; grandes templos que inspiram ostentação e individualismo; práticas políticas reacionárias, fisiológicas e corporativistas; entre outras. É esta a identidade dos evangélicos brasileiros?
Para responder, sugiro um mergulho na memória. Ela é capaz de evocar esperanças mortas e subverter o caos, dizia o teólogo de origem presbiteriana Rubem Alves. A começar com um passeio pela Av. Erasmo Braga, uma avenida importante do centro da cidade do Rio de Janeiro, que tem o nome de um líder evangélico, nascido em 1877.
Criado na Igreja Presbiteriana, Erasmo Braga decidiu estudar Teologia, aos 16 anos. Tornou-se pastor e professor. Imerso em causas sociais, contribuiu para cobrir deficiências no ensino primário e no secundário com aulas de Química, História e Música. Atuava como jornalista e ajudou a fundar, em 1899, a Academia Paulista de Letras. Em 1903, Braga associou-se à criação da Sociedade Científica de São Paulo. Nos anos 1910, produziu a obra que lhe trouxe notoriedade no país: o famoso conjunto de livros para as quartas séries primárias, intitulados “Série Braga”.
Para Braga, os evangélicos no continente deveriam vincular sua fé a ideais latino-americanos para contribuírem nas mudanças sociais. Ele tinha consciência de que tanto o individualismo quanto o sectarismo, marcas da maioria das Igrejas brasileiras, são um problema para a relação com a sociedade. E condenava o “eclesiocentrismo” (colocar as igrejas como a razão de ser da fé), que leva ao isolamento da religião.
A partir de várias iniciativas de unidade e cooperação, Braga idealizou a criação da Confederação Evangélica do Brasil. Sua morte prematura, aos 55 anos (1932), não lhe permitiu presenciar a fundação dela, em 1934. A Confederação tornou-se a principal organização dos evangélicos brasileiros por várias décadas, com desenvolvimento de projetos de unidade e cooperação em várias áreas da vida interna das Igrejas e da vida pública do país.
Braga tornou-se um dos mais destacados líderes evangélicos do seu tempo, por sua capacidade de dialogar e respeitar as diferenças. Por isso foi chamado de “Profeta da Unidade” pelo presbiteriano Julio Andrade Ferreira, autor de sua biografia. Ele escreveu que Braga viveu uma “era caótica” marcada por problemas de ordem teológica, intelectual e política e, por isto, sua biografia “deveria ser uma inspiração”. E ela o tem sido para muitas lideranças evangélicas Brasil afora, que não têm visibilidade midiática ou evidência na política. Não cabem neste espaço os nomes dos “Erasmos Braga” de hoje. São pastores e leigos que continuam no propósito de superar o eclesiocentrismo e tornar relevante a religião que serve, dialoga e respeita as diferenças. Sim, estes evangélicos existem, é só não procurar na TV.
*A jornalista Magali Cunha do Nascimento é evangélica, professora de pós-graduação em Comunicação Social na UMESP e escreve quinzenalmente para O Globo.
Fonte: O Globo (11/6/2015)